por Edgard Pereira.

 

George Stigler (1911-1991, Prêmio Nobel de Economia de 1982) denominou “Teorema de Coase” uma proposição feita por Ronald Coase (1910-2013, Prêmio Nobel de Economia de 1991) no clássico artigo The Problem of the Social Cost (1954, in The Firm, the Market and the Law. The University of Chicago Press. Chicago. Pg 217) que basicamente diz que

se os direitos de propriedade estão bem definidos e os custos de transação são baixos, a barganha entre os agentes econômicos resultará em um equilíbrio eficiente.

Essa afirmação, mais propriamente do que teorema, está na base da teoria do funcionamento dos mercados e talvez seja, na prática, o ponto de contato fundamental entre direito e economia, pelo menos na tradição do direito americano.

É útil esmiuçá-la, olhando separadamente cada parte que a constitui, para entender como esse “teorema” pode nos ajudar a responder à uma questão muito atual e posta no título desse Painel:

O que a teoria econômica tem a dizer sobre o mercado de milhas para compra de passagens aéreas?

 

Parte 1: “se os direitos de propriedade estão bem definidos

Na comercialização de milhas, que direito de propriedade está sendo transferido pela transação? Quem é o legítimo detentor desse direito?

O programa de milhagem ou de fidelidade é uma das várias estratégias de fidelização usualmente utilizadas por empresas de qualquer setor econômico para atrair e manter consumidores, que vão desde a simples cartela com carimbos a cada aquisição de um bem que depois podem ser trocadas por determinados produtos da mesma empresa, até a participação em sorteios de prêmios, descontos na compra de outros produtos, etc.

A sofisticação da economia e a concorrência entre as empresas pela clientela fez com que essas estratégias de fidelização se autonomizassem em relação às próprias empresas e constituíssem um negócio em si mesmo. Para nos distanciarmos por um momento do mercado de passagens aéreas e percebermos melhor a generalização do processo, vejamos, por exemplo, a estratégia de fidelização dos bancos em associação com as empresas comercializadoras de cartão de crédito.

Quando um indivíduo faz compras utilizando cartão de crédito recebe para cada Real gasto um equivalente em pontos a serem resgatados por meio dos programas de fidelidade. Os pontos creditados nos programas podem ser resgatados em troca de bens ou serviços ofertados pelas empresas gestoras desses programas. Essas, por seu turno, nada mais são do que lojas virtuais nas quais os clientes podem comprar bens e serviços usando a moeda própria da loja – os pontos.

E quem oferta os pontos? A própria loja. Pode-se dizer que a empresa gestora do programa de fidelidade “produz” sua própria moeda.1 Vende aos bancos que por sua vez presenteiam seus clientes com essa moeda. Nesse momento, quando o cliente recebe do banco (ou da operadora de cartão de crédito) esse presente, ele é o legítimo proprietário desse bem, ou melhor dizendo, o detentor do direito de usufruir ou transacionar essa propriedade.

É possível ir além e demonstrar que, na realidade, não se trata de um presente dado ao cliente, mas sim a restituição de algo pelo qual o cliente já pagou. Como, no nosso exemplo, os bancos compram os pontos das empresas emissoras, essa compra faz parte dos custos incorridos pelo banco na prestação de serviços e, obviamente, coberto pelo preço do serviço prestado. Como a concorrência interbancária pela fidelização do cliente obriga a todos os bancos a incluir no serviço prestado a bonificação – os pontos – é natural que para todos esse custo componha parte do preço da prestação do serviço.2 Assim o cliente, ao pagar a taxa de utilização do serviço prestado pelo banco, “compra” também a bonificação – os pontos – mais um argumento para torná-lo detentor legítimo do direito transacionar sua propriedade.

O mesmo raciocínio se aplica à bonificação em milhas feita pelas companhias aéreas. Milhas são apenas um nome distinto para a categoria geral, pontos. A natureza econômica é a mesma e as formas de contabilização e de comercialização também.

O esquema a seguir mostra graficamente como se dão as relações entre os agentes nesse mercado de “produção” e comercialização de pontos/milhas.

Há, portanto, nos termos de Coase, um mercado onde esse direito é transacionado.

Quando um detentor de milhas vende seu direito a um terceiro que irá resgatá-las em passagem aérea, com a intermediação de uma loja especializada nesse comércio – os sites algumnomemilhas – ele está na realidade utilizando-se de um mercado secundário do bem milhas.

Milhas são um ativo adquirido pelos participantes do programa de fidelidade. Um ativo cuja liquidez não é imediata, mas apenas uma promessa de contraprestação futura. Essa é uma característica comum a vários outros ativos que podem ser monetizados em mercados chamados “secundários”.

Esses mercados trazem liquidez imediata aos ativos de emissão primária – no caso as empresas gestoras dos programas de fidelidade -, que assim podem ser antecipados ou resgatados para atender à conveniência ou à necessidade imediata do proprietário do ativo.

As milhas dos programas de fidelidade, que são, na realidade, adquiridas pelos participantes, têm liquidez e, portanto, ensejam a atuação de empresas em um mercado secundário específico de compra e venda desses pontos. As próprias empresas gestoras permitem que os participantes emitam passagens aéreas em nome de terceiros em troca de pontos, façam transferência de pontos para outros participantes ou comprem pontos para completar a quantidade necessária para que possam convertê-los em produtos ou serviços.

É claro que há, portanto, um mercado primário de emissão e comercialização de milhas e um mercado secundário onde o detentor do direito de propriedade desse ativo pode transacioná-lo livremente antes da sua expiração, seja qual for a sua motivação.

 

Parte 2: “os custos de transação são baixos

Em seu discurso à Academia quando da premiação do Prêmio Nobel, Coase diz, em livre tradução, que:

“O mundo real apresenta fricções que denominamos custos de transação, fricções estas causadas por assimetrias de informações que dificultam ou impedem que os direitos de propriedade sejam negociados a custo zero”

Um corolário do teorema de Coase é que há custos para transacionar direitos de propriedade, os tais custos de transação. Alguém já disse que os custos de transação são os custos em que incorre por utilizar-se o mecanismo de mercado para organizar as transações econômicas. Assim, quanto maiores os custos de transação, mais difícil é que o resultado de uma transação econômica seja o melhor possível para ambas as partes em negociação. Em termos técnicos, mais distante de um equilíbrio eficiente de Pareto – aquele no qual cada parte atinge seu maior bem-estar possível, considerando que a outra parte também estará alcançando o maior bem-estar possível – estará a transação.

O mercado secundário de milhas, operado por meio de plataformas digitais que realizam compras e vendas online, em tempo real, diminuem drasticamente os custos de transação nesse mercado. Ofertantes e demandantes de milhas encontram nessas plataformas um locus eficiente para realizar suas transações.

 

Parte 3: “a barganha entre os agentes econômicos resultará em um equilíbrio eficiente

A opção pela organização da atividade econômica por meio do mecanismo de mercado, econômica e juridicamente definido, implica na aceitação do irrestrito direito de um indivíduo de dispor livremente dos ativos de sua propriedade. Na verdade, um ativo só se constitui como tal por ser transacionável. Um ativo que não pode ser transacionado não é, por definição, um ativo. Se o indivíduo é impedido de transacionar um bem que lhe pertence, a própria ideia de que o bem lhe pertence perde sentido. O direito de propriedade se define exatamente pela capacidade que tem o seu detentor de transferir a propriedade do bem a outrem.

As milhas provenientes de um programa de fidelidade são de propriedade de quem adquiriu a passagem aérea ou comprou bens ou serviços que os bonificaram com pontos ou milhas. Há um mercado primário e secundário para a comercialização das milhas por meio de plataformas eficientes e confiáveis que reduzem enormemente os custos de transação para a comercialização das milhas. Como resultado, mais consumidores conseguem acesso ao produto passagem aéreas a preços substancialmente reduzidos, ampliando do bem-estar do consumidor e reduzindo a chamada perda de peso morto (outro nome para ineficiência sistêmica) da economia.

 

Enfim, não há como deixar de concluir, exclusivamente com base na teoria econômica, que a comercialização de milhas diretamente entre consumidores, intermediada por sites especializados, é geradora de bem-estar social e de ganhos expressivos de eficiência no funcionamento do mecanismo de mercado.

 

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1 – A forma de contabilização da receita das empresas gestoras dos programas de fidelidade (CPC 30 aprovado pela Comissão de Valores Mobiliários pela Deliberação CVM nº 692/2012) deixa clara a natureza da transação que está sendo escriturada.
2 – Também nesse caso, a escrituração contábil da compra dos pontos ou milhas, sempre em obediência ao CPC 30, deixa clara a natureza dessa transação.

 

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